Boca a Boca

Certos acontecimentos parecem-nos estranhos e inacreditáveis mas são afinal recorrentes na história do mundo. São os ciclos de vida e de aprendizagem que estão em foco na crónica de Patrícia Portela, que abre este episódio.
Em 'Boca do Mundo', falamos com Fraga para antever a peça Censo, que estreia no Teatro Viriato no Dia Mundial do Teatro. O encenador propõe releitura dramatúrgica das obras de Brecht e reflete como e porquê tomamos decisões.
Para conferir também os detalhes da programação com Liliana Rodrigues no 'À Boca da Bilheteira'.

Show Notes

A história repete-se 

Muitas vezes me despeço de um jantar, de um encontro, de uma compra numa loja ou de um café dizendo “saúde”. Um hábito que herdei da minha avó Betinha, e que passei a usar com maior veemência e intensidade com o início da pandemia. Quando eu era criança, a minha avó explicava-me vezes sem conta que se deveria dizer sempre “Santinho!” ou “saúde!” quando alguém espirrava, (e a minha avó ainda beijava o terço que trazia ao pescoço) pois era com um espirro que muitas mortes começavam. Eu juntava este hábito da minha avó a muitas outros que me ensinara, como a de não deixar nunca uma tesoura aberta sobre a mesa (porque corta as amizades), ou os croquetes feitos de tudo que sempre comíamos à sexta-feira porque à sexta feira é dia de restos. A minha avó sempre nos educara para um mundo de privações, cheio de mágoas e de tragédias que eu nem sempre aceitava ou compreendia.

Esta semana, em conversa com familiares, descobri que tanto a avó materna do meu pai (ou seja, a mãe desta minha avó Betinha) como a avó materna da minha mãe, morreram de gripe espanhola, deixando as filhas órfãs, aos dez e aos dezoito anos de idade. Esta nunca foi uma história que tivesse circulado na família, e mesmo os meus pais não a conheciam. Ninguém se lembrara, até à data, de mencionar a causa da morte destes familiares que nenhum de nós conhecera. 
Enquanto ouvia a conversa, pensava que nunca tinha pensado sobre a infância da minha avó. Imaginei-a de repente a crescer sozinha, a cuidar das irmãs mais novas, a ir para Lisboa trabalhar, a casar só aos trinta, algo raro na sua geração, a fazer sempre croquetes à sexta-feira para juntar os restos dos outros dias e assim fazer uma refeição para todos. De repente, vi uma outra mulher. Uma outra vida que a tinha levado a ser a avó que conheci. A avó que dizia Santinho e beijava o terço de cada vez que me ouvia espirrar. Tivesse eu feito mais perguntas quando era mais jovem, e talvez a sua história me tivesse ensinado a sobreviver agora à minha. 

Passamos por estes dias ouvindo expressões como “sem precedentes” ou “como nunca se tinha visto”, ou ainda “um acontecimento inacreditável, incomportável, inusitado” e afinal estamos simplesmente paralisados frente à nossa história única e recente, sem nunca nos atrevermos a deambular pelo passado de outras histórias, por vezes tão próximas e tão similares. A história repete-se mostrando que apesar de únicos nas nossas semelhanças, somos todos iguais e vulneráveis perante uma experiência que nos parece tão diferente de tudo o que até agora nos aconteceu; e que afinal, já se passou com tantos dos que nos antecederam. Deixei-me ficar a ouvir aquela conversa enquanto imaginava familiares distantes a combater com bravura tantas doenças e catástrofes. Queria que aquela conversa nunca mais terminasse, que se repetisse, vezes em conta, que fosse encenada e recontada. Por um momento tive a certeza de que a força daquelas histórias de vida, à conta de serem contadas e recontadas, me trariam uma solução para as minhas dúvidas presentes.

____
Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato

What is Boca a Boca?

"Boca a Boca" é o podcast do Teatro Viriato em parceria com a Rádio Jornal do Centro. A cada semana, um espaço de partilha com a crónica de Patrícia Portela, diretora artística do Teatro Viriato, e entrevistas em que a cultura é o ponto de partida.